Que fazer? ou biografia da tragédia perene.
Todos os eventos, pessoas envolvidas e orixás/entidades são invenções, até que se prove o contrário mnemônico, a concidência com a realidade é isso mesmo, mera coincidência.
Exaltação ao ócio pueril. Por aqui só ingenuidade em garrancho, que um dia foi pensamento, depois virou letra.
Quando se começar a sentir-se de dentro
Só existe uma maneira de se sentir alguém numa cidade: andando, mas não transitando de ônibus ou carro, não de trem, sim caminhando mesmo, vendo de dia e de noite o movimento. Assim começo a me sentir no Recife, a capital pernambucana. Um trajeto longo para chegar até aqui permeado de recusas e frustrações, ora evidenciando um bairrismo ufanista arraigado, ora afetado pela cultura do medo implantada aqui, como quase em toda cidade grande do Brasil. Já há algum tempo comecei a me afeiçoar por esta cidade. Tudo já meio que desembocava na festa do Morro da Conceição quando acompanhado por Wagner um amigo meu do departamento de sociologia da UFPE, marcamos de ir a festa do Morro da Conceição. Segui as indicações dele peguei ônibus Barro Macaxeira na BR 101 em direção a zona norte, desci no terminal de integração da Macaxeira e tomei o Parnamirim. Perguntei ao motorista e ele me confirmou que este ônibus passa no parque da Jaqueira. Mais um dos lugares que nunca tinha visto até então. Mas se bem que pensando bem, tudo começou antes, quando a Fernanda ainda estava aqui para tentar o mestrado em Sociologia. Com ela, Wagner, eu, Humberto e Andreane, demos várias buscas pela balada perfeita. Eu particularmente não sou de freqüentar balada, nem uso essa palavra no meu cotidiano só estou começando a usar agora depois de perder as raízes headbangers de Fortaleza. Perder não, acalmar por hora. Andamos muito de carro, mas muito mesmo, no movimento por achar algum lugar interessante que pudesse ter diversão, comida, bebida e que fosse preferencialmente barato para bolsistas poderem pagar. Mas de carro não se conhece a cidade como disse, mas se instiga. Eu me instiguei vendo ruas, avenidas, becos, bares, e o povo fazendo simplesmente nada, só o que sempre fazem. É um clichê, mas é cotidiano que me atrai, demais. Então passando pelo Guaimun Gigante, Shopping Plaza, fomos terminar no bom e antigo Recife velho em busca de um show com bandas conhecidas dos nativos, umas bandas das “ciências sociais”. Acabamos chegando numa festa do povo da comunicação, cinema, artes plásticas e letras. Bem acho que essa descrição é suficiente.
Então depois dessa instigada e Fernanda ter ido embora chegava o dia da festa do Morro da Conceição. Bem como de um candomblé que tinha sido convidado a participar. No dia 8 de dezembro então me dei conta que esta cidade finalmente me afetou. Eu desembotei a cal e o mangue fétido. Os transformei em boas caminhadas regadas a conversas com meu amigo Wagner. O que me fazem lembrar, mas de maneira nenhuma tentar comparar, as épicas caminhadas com meu grande amigo e brother do peito Nicholas o homem que mais entende de metal que conheço. Até ano passado acho que conseguia dar conta de competir com ele. Hoje em dia não mais. Uma enciclopédia ambulante bebedora de coca-cola transbordante de sangue, vísceras, maldade e matemática. Mas muito meu amigo. Haverá um tempo pra contar “destas” caminhadas, por hora fiquemos com aquelas.
No dia da festa do morro me encontrei com Wagner no parque da Jaqueira e rumamos para o Morro, segundo ele uma caminhada breve 20 ou 30 minutos talvez. Passamos pelo Sítio Trindade e tirei umas fotos. E a caminhada começou a tomar a vontade de Wagner que dizia “vamos por aqui, por aqui, ali tem uma coisa, lá tem outra”. Quando percebi não era nada, era simplesmente o bairro com casas, mercados, mercearias, pet-shops, ruas, ora de calçamento ora asfaltadas. E muita descrição por parte dele. E o engraçado fui convencido de que aquele marasmo citadino em dia de feriado merecia alguma atenção e nele me encontrei. Parnamirim é um bairro de classe média, próximo a Casa-Amarela, que como diversos outros do Recife faz fronteira com uma favela. Passamos então pelo Mercado de Casa-amarela, a feira e já naquela altura estafados tomamos um caldo de cana de hum real. Logo depois disso chegamos na imponente Av. Norte que liga uma parte de Recife a outra, tipo uma Osório de Paiva de Fortaleza. E ao ligar, ela rasga por entre as casas com seu asfalto denso forjando de um lado prédios de classe média do outro um morro pobre. Os prédios mês ofuscaram, mas o Morro me encantou. E se indagado pelo Wagner qual caminho seguir a resposta saiu imediatamente como se fosse Nicholas me perguntando: “o mais longo e difícil”- foi a resposta automática. E a estada lá foi incrível, mesmo que não tivesse nada de estranho, não fosse um Marrocos com as construções com arabescos ou uma Paris neogótica, era tudo igual ao que vejo todos os dias, mas lá era diferente. Era o olhar que se deixava adestrar e por um instante desligado o foco automático, levado ao manual e ajustado de maneira diferente para então vislumbrar uma outra paisagem. Depois disso comecei a me questionar sobre o sentido da cidade pra mim e coincidentemente, descobri que meu orientador irá, no próximo semestre ofertar uma disciplina que me interessa. Se fosse com o foco no automático iria pensar: “Não preciso mais de créditos, vou me embora pra Fortaleza direto, mais seis meses nessa cidade pra que?”. Mas como o ajuste manual estava ligado o pensamento foi: “Rapaz, olha aí boa disciplina, vou ficar até junho então.” E assim decidi até então. A cidade me afeiçoou. Essa caminhada com Wagner durou, entre algumas paradas para hidratação, (caldo-de-cana no mercado de Casa-Amarela, coca-cola 1 litro em frente ao bar Acadêmico no Morro da Conceição, e água mineral no Pão de Açúcar de Parnamirim) aproximadamente 4 horas. Fomos terminar onde começamos no parque da Jaqueira onde ele mora.
Porém nenhuma experiência foi mais rica do que experimentar o submundo da noite free recifense. O show de Siba iria começar as 23:00 no pátio de São Pedro e me informaram que os eventos da prefeitura do Recife são pontuais. Duvidei mas fui afim de ver outras bandas Também: Alessandra Leão (mais uma pop-cult moderninha regional) e Issar (uma versão melhorada e negra da anterior com mais pitadas afro e mais experimentalismos; gostei mais dessa versão 2.0). E realmente às 23:20 Siba entrou no palco e só foi terminar lá pelas 01:30 da manhã. Qualquer palavra menor do que fantástico não descreve esse show. Ele e a Fuloresta são um dos melhores conjuntos do Brasil, oxalá do mundo. Ao fim do evento os colegas que me encontrei lá me ofereceram carona até um local que pudesse ficar melhor pra pegar buzão: recusei. Como na vinda observei que o movimento era muito grande fiquei pensando se ainda era seguro andar por lá. Era. Mas segurança de fato não passou tanto pela minha cabeça não, agora sei, que queria era passar pela Praça da Independência de novo, ver os tios vendendo CDs piratas, as barracas de cachorro-quente, as putas, os putos, os mendigos se aconchegando pra dormir grudados como arroz papado pra espantar o frio e dividir o crack e as paradas de ônibus lotadas de gente desbundada e lisa como eu. Parei, perguntei onde passava ônibus pra Caxangá e me indicaram. Lá cheguei, era já perto da Ponte Guararapes e aguardei. Nada do ônibus passar. Iria demorar ainda uns 20 min. Fitei a ponte ao fundo, observei o movimento, encarei e segui. Sim, isso pra mim foi bastante emblemático passar a Ponte Guararapes sozinho de madrugada foi um feito que só os muito familiarizados com ela o fariam. É um símbolo de insegurança, como quase toda ponte. Foi como atravessar aquele quarteirão na Praia de Iracema que leva da ponte velha para a ponte nova, Não pela avenida Pessoa Anta, pelo quarteirão de trás aquele putrefato sem iluminação com uma repartição pública desativada. A maior diferença que naquele momento também saltou aos olhos e me distraiu de qualquer evento que pudesse ocorrer: O Rio Capibaribe. Foi especialmente belo naquele momento. Acho que unicamente belo.
Ao sair da ponte tive a sensação de que estava chegando em algum lugar e não era em casa ainda, mesmo assim não me abateu um ódio mortal da distância ou do tempo que iria demorar para chegar. Passando pelas paradas de ônibus da Av.Conde da Boa Vista muita gente esperando os Bacuraus (nome dado aos ônibus madrugadores do Recife e Região Metropolitana). Como as paradas são seletivas para desafogar o trânsito decidi esperar entre uma e outra espertamente, como muita gente faz, pra correr em direção ao ônibus quando ele se aproximar. Poderia pegar uma boa variedade de ônibus desde que passem pela Caxangá perto do viaduto da BR-101. Quando então avistei um concorrido ponto de cachorro quente, daqueles salvadores em fins de noite. Me senti saindo de um show do finado Hey Ho Rock bar indo comer um cachorro quente e depois tomar um caldo de carne pra dissolver a cachaça na barriga, em frente ao Dragão do Mar, naquela Kombi branca que fica do lado da antiga alfândega agora Caixa Econômica. Comi o dogão em alguns minutos e estava pronto para pedir outro quando avistei uma condução. O ônibus Loteamento Santo Cosme e Damião passou, tomei ele. E muita gente também. Fui até o fim do ônibus a fim de ficar próximo da porta para descer. E em todo o trajeto fiquei imaginando ao ver um ponto de referência qual seria o seguinte e o seguinte e o seguinte: agora passamos pelo shopping, agora é o Mustang, a FAFIRE, Posto Shell, tá chegando no Derby, a Rua Benfica, O museu (da Abolição), A Caxangá...
Daí, o momento de descer e andar pelos inóspitos 3 quarteirões que levam da Av; Caxangá a meu apartamento se aproximava. Comecei a me sentir preocupado e ansioso, pois teria de andar rápido e estar atento a movimentação. Ali, depois do Extra, desci. E quando olho, quem desce comigo? Não sei, um sujeito qualquer. Mas um daqueles pseudo-playboy de periferia, estereótipo misto de jogador de futebol e surfista. Camisa de marca de surf, bermudão da Puma, sapatilha, um cordão, uma pulseira e claro, um boné (amarelo marca-texto). É, essas pessoas andam de boné de noite. Ainda era um sujeito do meu tamanho só que ao invés de gordura, músculo. Aí pensei: “pronto se o cara vier roubar a gente vai ter de ser muito corajoso pra encarar dois cabras desse tamanho”. E começamos a andar próximos (mas nem tanto) o suficiente pra burlar a visão de quem quisesse nos atacar, éramos cúmplices silenciosos na presença um do outro em busca de segurança (acho que isso pode ser só meu ponto de vista ele poderia estar muito bem pouco se importando, pois aquele caminho já deveria estar cartografado pra ele). Fomos assim até meu prédio, quando entrei, ele continuou a saga, solitário, mas deve ter chegue bem ao seu destino. Chegando em casa, um banho decente uma última verificada no email, um copo de água gelada e cama.
Essa narrativa é só pra externar o que me surpreendeu ultimamente: A cidade do Recife.
Toda mudança nos prega uma sensação de sofrer por antecipação. É desta sensação que gostaria de falar hoje. Só dela.
É uma mediação complexa tratar do fim de algo, que já tem uma história própria e o início em potencial de outra que reivindica sua própria história. Esta história pode ser meramente uma estória, quem sabe?, mesmo assim ocorre o gelo espinhal tradicional. Acredito que não seja do "fim" propriamente dito que temos fobia, muito menos do "início d' outro". Temos medo é da sensação desse trato, a priori, parte das escolhas individuais de cada um. Se fosse tão bem compactuado, tão bem escolhido não teríamos esse medo, esse ranço. Porque o é?
É justamente pela impotência que as vezes nos abate como cordeiro manso, no cotidiano fugral. E nem de deus/Deus estou falando, é coisa mais simples, que beira a banalidade, são planejamentos errados, conjunturas mal elaboradas, modificações de supetão na nossa vida que nos deixa perplexo. São como amores que atravessam um relacionamento dito monogâmico e estável. Vem com gradação de F5, destruindo tudo que vislumbra pelo caminho, não respeita convenções da OIT, ONU, OMS, OPEP ou coisas mais importantes. Fico embasbacado com tanta arrogância do destino ao tentar tirar de mim algo que por direito da força histórica já é meu. Quer ainda, que me contente cabisbaixo com o pesar do próprio fardo. Mesmo que seja só mudar, por exemplo, de quarto, dentro da mesma casa que vivo há décadas.
São como os amores arrebatadores que atravessam os afetos já construídos. Eles avassalam sem piedade qualquer racionalidade, o que se deve fazer é somente esperar motivado por eles, um belo epitáfio.